Resenha do Livro A Sangue Frio, de Truman Capote
- Letícia Santini
- 20 de set. de 2016
- 3 min de leitura
O mistério por trás do crime

Madrugada de lua cheia do dia 15 de novembro de 1959. A pacata cidade de Holcomb, no interior do Kansas, deixaria de ser apenas a cidade onde ‘’cresce o trigo’’ e passaria a ser palco do mais frio e brutal crime arquitetado – milimetricamente - por Perry Smith e Richard ‘’Dick’’ Hickock. Seis anos depois, em 1965, os leitores da já então prestigiada revista ‘’The New Yorker’’ encontrariam em suas páginas um relato que entrou para a história do jornalismo e da literatura. Esse, acompanhado de outros três capítulos acerca do assassinato de uma família completa no Meio Oeste dos EUA, transformou-se na obra prima do jornalista Truman Capote, intitulada ‘’A Sangue Frio’’.
O romance-verdade ou de não ficção, em que fatos reais são narrados com técnicas romanescas, foi inaugurado com a publicação do livro, tornando-se referência no que diz respeito ao gênero do New Journalism americano. Excêntrico e não muito jeitoso com os entrevistados à primeira vista, Capote contou com o auxílio da amiga de infância e autora do livro O sol é para todos, Harper Lee, para o processo de apuração inicial. Viajaram juntos para a pequena Holcomb a fim de desvendar e entender o mistério por trás do crime (sem motivos aparentes) contra os Clutter – família querida por todos os habitantes do município.
Através de exaustivas entrevistas, de minuciosas pesquisas locais, da investigação dos detalhes do homicídio, de um detalhado perfil das vítimas, da reconstrução dos fatos que antecederam e sucederam o momento em que Herbert, Bonnie, Nancy e Kenyon tiveram suas vidas abruptamente interrompidas e do contato pessoal do autor com os assassinos, imbricam-se personagens e fatos, histórias secundárias, depoimentos dos policiais encarregados do crime, laudos psicológicos e procedimentos jurídicos. Ao longo da narrativa, Capote tematiza algumas das grandes questões da condição humana: solidão e miséria moral. Traz ainda a debate a questão da pena de morte em todas as suas implicações, especialmente no que se refere à legitimação da banalização da vida e à denúncia da inocuidade de um castigo em que se igualam executores e executados.
A leitura, requintada e prazerosa do início ao fim, fica interessante ao alternar-se entre os narradores. Ora as vítimas, ora os culpados, ora outros personagens. Embora composta de quatro longos capítulos, a narração não se torna maçante e cansativa, já que as histórias se intercalam no decorrer do livro. Não há dúvidas: A Sangue Frio é uma obra que suscita grande inquietação. Emerge da narrativa um sentimento de inconformismo e de profundo desconforto frente ao desperdício daquelas vidas, despertando nos leitores compaixão, ternura e angústia.
Em contrapartida, essa mesma sensibilidade do autor na maneira da escrita, que nos aproxima dos personagens, foi motivo de críticas no meio jornalístico americano, colocando em xeque a precisão factual do relato. Capote era famoso por não utilizar recursos como gravadores em suas entrevistas e não fazer anotações, para não intimidar os entrevistados. Além disso, tem-se a sensação de uma certa empatia pelos dois assassinos, como se a escrita do autor amenizasse o horror do crime cometido. Por fim, percebemos uma imparcialidade na veracidade dos fatos quando o autor romantiza Perry Smith, tentando justificar seus atos por consequência de uma infância difícil, e demoniza o companheiro, Richard Hickock, transformando-o em um sociopata em potencial.
Independentemente do que de fato ocorreu, a história é bem construída, bem escrita e traz profundos questionamentos para estudantes de comunicação e admiradores da boa literatura. A sangue frio deixa-nos, ao virar da última página, a sensação intrigante de um mistério não de todo desvendado, a angustiante impressão de que as verdadeiras razões daquele ato cruel permanecerão para sempre incompreensíveis, inatingíveis e inalcançáveis.
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